2009-07-01

de viagem e avião


uma garrafa de água e limão
vous voulez des glaçons?
non, mais j'aimerais bien le stick presseur, celui que vient avec le chocolat chaud
ça?
oui, c'est ça, comment vous appelez ça?

pelo barulho dos motores vejo-lhe os lábios a falar
não ouço e não percebo
deve ter dito qualquer coisa de inteligente
sorrio

é muito bonita
como quase todas elas
e nem todas fazem sorrisos corteses de serviço

alguns sorrisos são de dentro sentidos sentem-se
faz uma certa diferença que é toda a diferença
para a maioria de quem veja os sorrisos devem ser todos sorrisos
para mim não

basta ver como fica o rosto depois do sorriso
se à volta dos lábios restos de sorrisos convidam a voos sorridentes
ou se a rigidez se instala como cadáver que já morreu

quase todas matam os sorrisos à nascença
prematuros sorrisos moribundos
e é triste ver sorrisos nado-mortos que falam da tristeza que lhes vai dentro

não se ensinam sorrisos verdadeiros
aprende-se da vida quando se é feliz ou se faz por ser feliz

a alma humana está por todo o lado e nenhuma situação é enfadonha
se existe alguém por perto

observo quem passa ou esteja
e todo o traço é um filme inteiro
que não descodifico completamente
nem pretendo não sou deus
mas encontro fontes inícios trânsitos estados
a maioria em preocupação aflitos
quase sempre apressados
e alguns em estar calmo porque sim

vejo poses olhares fugazes penteados cachecóis
e testas
as testas dizem muito tanto
quando carregadas que têm muitas pistas de autoestradas
variadamente completadas com olhos raiados a fazer de ferozes
mais algozes deles mesmos

nos sorrisos das hospedeiras
sinceros
nunca se tem a certeza que haja convites
e lembro-me do Truffaut no filme em que vem a Lisboa
e há um número de telefone numa carteira de fósforos
e já não me lembro do resto
mas lembro-me dele na Gulbenkian e duma pergunta da assistência
que lhe falava disso porque o filme tinha uma conferência em Lisboa
e ele estava ali connosco numa conferência em Lisboa
e chegou ao palco tal como no filme
através da cortina
e foi impossível não reparar no dejá-vu
e alguém lhe perguntou se tinha uma carteira de fósforos nos bolsos
e qual o número de telefone
e todos rimos gargalhadas alegres como se amanhã todos continuássemos vivos
e ele já tinha cancro e a morte adiada
e ninguém sabia
e eu era um puto deslumbrado com a vida do cinema
que já sabia que o cinema está em todo o lado
que ainda não sabia que a ficção é pálida
amostra
de toda a vida real

no voo de ida reparei numa hospedeira que me olhou
sem necessidade profissional
reparei é força de expressão
foi pela visão periférica
percebi um olhar intenso
e fui ver o que era
e ela olhava-me fixamente
e não desviou o olhar nem se embaraçou
simplesmente entregou-me um sorriso bonito
e sorri-lhe
enquanto duraram os olhares a ver-se e ela a passar

ela passou e eu guardei-lhe o sorriso
não sei o que fez ela do meu sorriso que lhe dei

já não se fuma a bordo
e ninguém anda com carteiras de fósforos
nem eu ia para Lisboa
nem dar uma conferência
mas não me impedi de pensar como é um namoro assim
como o da Filomena e o comandante alemão
ele no ar ela em terra
vêm-se quanto nas escalas extemporâneas

nestas viagens faço muitas coisas
durmo
durmo muito quando consigo que não me acordem

ao comandante havia de lhe encher a boca de trapos
quando se lembra de avisar a altitude, sempre a mesma
a temperatura lá fora, sempre a mesma
a velocidade, sempre a mesma
o trajecto, sempre o mesmo
a hora de chegada, sempre a mesma
a velocidade do vento, variável

podiam estar calados e calarem-se
e deixarem-me a alma chegar-se aos anjos

acredito em anjos
como não acreditar se sobrevivi
para contar

como foi que não tenha sido um anjo
que me guiou
que guinou
que fez
agora

só pode ter sido porque não tenho mais explicação

no todo racional e engenheiro e de inteligência que tenha
a poesia devo-a à vida
e a vida ao anjo
que tenha tido o desleixo de fugir das suas tarefas celestiais
que hão-de estar tão sobrecarregados que sejam infelizes como todos
e nessa fuga para descansar da enfadonhisse eterna
deve ter achado graça intervir
e nessa graça foi coreógrafo do meu ballet estranho

há lá coisa mais engraçada que piruetar de carro despistado às 6:45 da manhã
entre sons de tears in heaven a plenos pulmões?
o anjo deve-lhe ter achado graça brincar a deus por uns segundos
de eternidade adiada
os segundos em que renasço de todas as cinzas e do cheiro intenso
da borracha queimada ao som da luz da madrugada

acredito em anjos
não
acredito num anjo que me tenha feito dançar no palco da estrada para estar aqui
e se há um
talvez haja mais

abro a garrafa de água
que coloco um pouco no copo de água
e à meia rodela de limão
pressiono-a
para lhe dar a liberdade
de me gostar

repito o processo a espaços
enquanto
escrevo o que me apetece e inspira

como as nuvens que são água
os passageiros cabeças de fósforos
e tudo o que pelo ar me deixe ir sem pressa
sorrisos abraços ternuras carinhos
bolos pastéis natas travesseiros
escrevo entre sonos
espreguiço-me quando me levanto
a deixar passar a 5A
escrevo na memória de adormecer
devia anotar não anoto
ou me lembro depois ou que se lixe
agora durmo o descanso
não tenho pressa

aterramos
tento ver se temos manga ou autocarro
as da 14 em diante estão ocupadas
falta a 7 que não vejo
paramos ao lado da 7 preenchida
temos autocarro

sou o terceiro a sair
já no autocarro
vejo todos a descerem
telemóveis ligados
as conversas sempre as mesmas
chegámos


Pedro

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